Em diversos laboratórios de química (incluindo vários aqui mesmo no departamento de química da UFSC), muitos pesquisadores sintetizam substâncias com provável atividade biológica. As vezes, partem de uma substância de atividade conhecida, e preparam derivados sintéticos para testar suas atividades. Mesmo alunos de iniciação científica participam destas pesquisas. O conhecimento da relação entre estrutura química e atividade biológica é um dos objetos de estudo da área de química medicinal. Muitos dos fármacos hoje disponíveis nas farmácias foram frutos de pesquisas similares as que ocorrem aqui na UFSC.
Inicialmente, os químicos limitavam-se a isolar determinadas substâncias naturais, a partir do extrato bruto de plantas com eficácia já conhecida. Mais recentemente, a química de síntese orgânica foi introduzida nesta área e os químicos passaram a não somente criar análogos sintéticos e derivados, mas também a "criar" substâncias totalmente inéditas, que vieram a se tornar fármacos. Hoje, a preparação de um fármaco leva anos de pesquisa; diversos conceitos vistos em sala de aula passam a ter importância fundamental, tais como estereoquímica, síntese orgânica, polaridade de moléculas, forças intermoleculares, entre outros. Neste artigo, o QMCWEB apresenta algumas classes de fármacos e suas respectivas estruturas químicas.
cocaína procaína lidocaína
A estrutura química de uma substância é fator determinante na sua atividade no organismo. E, em geral, substâncias diferentes com estruturas químicas semelhantes possuem atividade biológica também similar. Um exemplo é o caso da cocaína. Esta substância é um alcalóide extraído de uma planta nativa daqui da américa do sul. Na medicina, foi um dos primeiros anestésicos locais, isto é, uma substância capaz de produzir analgesia no local onde é aplicada. Embora fosse muito eficaz, existiam sérios problemas: a cocaína produz euforia, bem-estar excessivo, sensações de poder, dependência física e psicológica. Químicos sintéticos partiram, então, para a busca de substâncias que tivessem o mesmo poder anestésico da cocaína, mas que não surtissem os efeitos colaterais indesejados. Em 1905, foi preparada o procaína. Esta substância é utilizada até hoje: como é rapidamente absorvida pelo corpo, é, em geral, aplicada juntamente com um vaso constrictor, para manter o anestésico no local da aplicação o maior tempo possível. Em 1948, outro anestésico foi patenteado nos EUA: a lidocaína, vendida como xilocaína. Além de ser muito mais forte do que a procaína, não necessita de vasoconstrictor. Tanto a lidocaína, procaína e a cocaína possuem efeitos anestésicos semelhantes. Mas o que há, entretanto, de comum com a estrutura química destas substâncias? Uma olhada com maior atenção revela que, em todas as estruturas, observa-se o seguinte: (a) um anel aromático em uma das extremidades da molécula; (b) uma amina completamente substituída na outra extremidade; (c) um éster ou uma amida conectando os dois extremos. Não somente nós achamos as estruturas semelhantes: alguns dos receptores onde estas moléculas se ligam, nas células, são os mesmos.
A grande parte das substâncias conhecidas como feniletilaminas possuem intensa atividade biológica e são capazes de alterar a nossa percepção da realidade. Entre estes, estão substâncias como morfina, LSD, mescalina, heroína e outros. Todas estas substâncias tem uma estrutura derviada da 2-fenil-etanoamina. No caso da morfina e do LSD, o segmento alquílico que liga o anel ao N é cíclico. A morfina deve seu nome ao deus romano dos sonhos. Um farmacêutico alemão (Friedreich Sertuner, 1803) escolheu este nome por causa do forte poder narcótico desta substância (uma substância narcótica provoca distúrbios na consciência, causa entorpecimento, sono, e perda dos sentidos).
2-fenil-etanoamina morfina mescalina
LSD codeína heroína
Os sumerianos, uma das civilizações mais antigas, já utilizavam a base da flor da papoula para preparar o ópio, há cerca de 6.000 anos. A morfina corresponde a cerca de 10% do peso do ópio seco. Foi o primeiro alcalóide a ser isolado e identificado (Sertuner, F., 1803). A morfina foi logo adotada na medicina, devido ao seu forte efeito analgésico e supressor de tosse. Além disso, produz outras respostas fisiológicas, como apatia e euforia. E, também, provoca dependência física e psíquica. O ópio contém outros alcalóides, tais como a codeína. Embora seja uma analgésico menos potente, a codeína é um dos mais fortes supressores de tosse conhecidos.
Devido à dependência e aos efeitos tóxicos da morfina, logo procurou-se por um derivado sintético. Uma das idéias fo o produto obtido a partir da acetilação dos grupos fenólicos da morfina, levando ao diacetilmorfina. Esta droga era tão poderosa que as doses a serem utilizadas seriam tão pequenas, a ponto de não serem tóxicas. Mas, infelizmente, a diacetilmorfina mostrou uma capacidade de provocar dependência como antes nunca vista. Recebeu o nome comercial de heroína e foi vendida em vários fármacos, principalmente em xaropes para tosse; hoje, tem a venda proibida e é ilícita na maioria dos países. Um fato curioso sobre a heroína: um dos produtos da acetilação com o anidrido acético é o ácido acético. Este ácido é o que está presente no vinagre, e lhe dá o cheiro característico. A polícia francesa treinou cães para fareijar este odor e, então, auxiliar na descoberta de fábricas clandestinas de heroína! Tanto o LSD como a mescalina são extremamente alucinógenos. A mescalina é uma alcalóide natural e extraído do cactus peyote, comum na américa central. É a droga que, por vários séculos, foi utilizada nos rituais das civilizações americanas pré-colombianas. O LSD, entretanto, foi primeiramente preparado em laboratório; mais tarde descobriu-se que certos microorganismos eram capazes de, também, produzí-los. A substância foi preparada por Albert Hoffmann, em 1943, no Sandoz Laboratory. Por cinco anos, Hoffmann e colegas estudavam a química do ácido lisérgico, um dos alcalóides encontrados no fungo ergot, que cresce em cereais. Hoffmann preparou a amida deste ácido (a N,N-dietilamida). Acidentalmente, ele ingeriu uma pequena quantidade do produto. Ele experimentou estados de delírio e alucinações, e o que ele chamou de "caleidoscópio de cores". O LSD, de fato, provoca fortes alterações sensoriais e perceptivas, despersonalização, sinestesia e outros. Esta foi a droga eleita pelos jovens das décadas de 60 e 70. Os Beattles gravaram um album inteiro em homenagem a esta droga; uma das faixas chama-se Lucy in the Sky with Diamonds. Embora esta droga não produza dependência, ela é considerada ilícita na maioria dos países.
QMCWEB:// Desafio
naloxone
Algumas substâncias, tais como o naloxone, são capazes de anular os efeitos dos mais poderosos narcóticos, incluindo a heroína. Estes compostos são chamados de antagonistas opióides: eles antagonizam o efeito de produzido pelas substâncias que se ligam aos receptores opióides, como a morfina e a heroína. Um desafio para você: é o naloxone outro exemplo de 2-feniletilamina? Se sim, encontre na estrutura esta porção; se não, justifique.
anfetamina metanfetamina fenilpropanolamina
Muitos fármacos livremente vendidos em farmácias são também derivados da feniletilaminas. O maior grupo é o das anfetaminas, substâncias estimulantes, capazes de aumentar a pressão sanguínea, reduzir a fadiga e inibir o sono. São utilizadas em descongestionantes nasais, anti-hemorrágicos, inibidores de apetite, estimulantes. Também causam dependência e danos físicos e mentais a longo prazo. A maioria destas drogas, entretanto, pode ser adquirida sem nenhum problema em farmácias brasileiras. Estas drogas são todas sintéticas, e foram frutos de anos de pesquisa em laboratório. Uma das mais antigas é a própria anfetamina (benzidrina), que é o 2-fenil-1-metil-etanoamina. Outros derivados surgiram, numa tentativa de diminuir a dependência e toxidade, tais como a metanfetamina (metedrina) e a fenilpropanolamina, uma das preferidas em descongestionantes nasais.
ácido carbâmico meprobamatocarisoprodol
Além de diminuir a dor física, as drogas também têm sido usadas para tratar outros tipos de males, tais como os distúrbios psíquicos. Muitas pessoas são acometidas de neuropatologias, tais como esquizofrenia, depressão, ansiedade, entre outros. Os antigos hindus já utilizavam o extrato de uma planta, a rauwolfia, para combater desde insônias a distúrbios mentais. Esta planta produz o alcalóide reserpina, que passou a ser vendido na forma pura em 1954. Em 1981, entretanto, o EPA dos EUA classificou a droga como carcinogênica. Desde a segunda metade deste século, novas tipos de drogas foram produzidas para combater estas psicoses. Os tipos são classificados de acordo com a sua finalidade. As mais comuns são as dos grupos dos tranquilizantes e dos antidepressivos. Os tranquilizantes estão entre os remédios mais receitados por médicos. O meprobamato (Equanil e Miltown) é a droga mais popular. Este tranquilizante pertence à classe dos carbamatos, que são ésteres do ácido carbâmico (ácido aminofórmico). O carisoprodol (Soma) é outro carbamato popular, e é um forte relaxante muscular.
O diazepam (Valium), o flurazepam e o oxazepam são tranquilizantes de uma classe diferente: os benzodiazepínicos.Todos possuem 2 anéis aromáticos e um heterocíclico. O diazepam foi primeiramente preparado em 1933. Todos são fortes tranquilizantes e relaxantes muscular. Estas drogas induzem ao sono e a perda de consciência. São utilizados para combater a insônia, nervosismo, stress, entre outros.
diazepam
fluorazepam
oxazepam
Mecanismo da Depressão e a Fluoxetina
Esta é uma representação do sistema serotonínico. A serotonina é liberada na fenda sináptica pelo neurônio pré-sináptico; ela se liga ao receptor serotonínico no neurônio pós-sináptico. Isto gera a ativação deste neurônio e a propagação do sinal sináptico. A serotonina é recaptada pelas bombas de recaptação nos neurônios.
Quando uma pessoa está deprimida, ocorre um desbalanço no sistema serotonínico. A transmissão de impulsos nervosos está dificultada.
Muitos cientistas acreditam que drogas como a fluoxetina agem inibindo o sistema de recaptação da serotonina, provocando um acréscimo na concentração serotonínica nos receptores pós-sinápticos. Isto pode ajudar a diminuir a depressão dos impulsos nervosos.
Grupo da UFSC faz Química Medicinal!
A doença de Chagas é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e representa um grave problema de saúde pública, pois não existe nenhuma quimioterapia que seja efetiva no combate à este mal, levando à morte centenas de milhares de pessoas por ano. Utilizando-se da técnica de Planejamento Racional de Inibidores Baseado em Estruturas Tridimensionais de Proteínas, um grupo da UFSC tem estudado a enzima gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase glicossomal (gGAPDH) de T. cruzi, responsável pela via glicolítica do parasita e essencial para sua obtenção de energia. A estrutura de gGAPDH foi totalmente elucidada por difração de raios-X, encontrando-se diferenças na região de ligação da porção adenosina do cofator NAD+ com relação à enzima homóloga humana. Baseado nestas diferenças estruturais utilizaram-se técnicas de busca computacionais que forneceram um conjunto de moléculas que representam candidatos a inibidores de gGAPDH. Este projeto é feito em conjunto com pesquisadores do IFSC/USP, e, aqui na UFSC, é coordenado pelo professor Dr. Marcus Sá.___Marcus já publicou um artigo aqui no QMCWEB, sobre Química Combinatório. Clique aqui e saiba mais!
Os primeiros antidepressivos eram os antidepressivos tricíclicos (TCAs) e os inibidores da enzima monoaminaoxidase (IMAOs); foram descobertos através de observações e experimentações clínicas. Esta geração de drogas era eficiente em potencializar os mecanismos serotonérgicos e noradrenérgicos. Infelizmente, entretanto, estas drogas também bloqueavam os receptores histamínicos, colinérgicos e adrenérgicos, provocando efeitos colaterais como ganho de peso, boca seca, constipação, fadiga e tontura. Os IMAOs interagem com a tiramina e podem causar hipertensão, além de interagirem fortemente com outros medicamentos.
fluoxetina (Prozac)
Entre os antidepressivos mais recentes, destaca-se a fluoxetina. Lançada em 1988, é uma das drogas mais vendidas no mundo. É o princício ativo do Prozac, fármaco apelidado de "a droga da felicidade". Desde seu surgimento, são escritas cerca de 1.000.000 de receitas médicas por mês para este fármaco; já foi usado por mais de 35 milhões de pessoas no mundo! Com toxidade relativamente pequena e efeitos colaterais minimizados, a fluoxetina tem sido escolhida por milhões de pessoas que querem melhorar seu humor e combater a depressão. Como é uma droga recente, ainda não se sabe sobre os efeitos de longo prazo. De qualquer forma, muitas pessoas estão consumindo esta droga diariamente.
Glossário IUPAC
>Agonista: substância endógena ou uma droga que podem interagir com um receptor e iniciar uma resposta fisiológica ou farmacológica característica daquele receptor.>Análogo: droga cuja estrutura é relacionada a de uma outra droga, mas com propriedades químicas e biológicas diferentes. >Antagonista: droga que inibe o efeito de outra. >Droga: qualquer substância utilizada para tratamento, cura ou prevenção de doenças em seres humanos ou animais. Uma droga também pode ser usada para fins recreacionais, para diagnóstico clínico, ou para modificar funções biológicas (e.g., pílula anticoncepcional). >Farmacocinética: é o estudo da absorção, distribuição, metabolismo e excreção de comportos bioativos.>Metabolismo: é o conjunto dos processos físico-químicos envolvidos na manutenção e reprodução da vida, nos quais os nutrientes são quebrados para moléculas menores para gerar energia (catabolismo) e, então, são utilizados para formar moléculas mais complexas (anabolismo)>Química Medicinal: uma área da química, que também envolve aspectos e conceitos da biologia, medicina e farmácia. Está relacionada com a invenção, descoberta, design, identificação e preparação de substâncias com atividade biológica, além do estudo de seu metabolismo, interpretação de seu mecanismo de ação biológica a nível molecular, e construção de relações entre estrutura e atividade. >QSAR: "Quantitative structure-activity relationships" - relações matemáticas entre estruturas químicas de substância e suas bioatividades, de uma maneira quantitativa. >Receptor: molécula ou estrutura polimérica em uma célula (ou no citoplasma) que especificamente reconhece e liga-se a determinados compostos (neurotransmissores, hormônios, lectina, droga, etc.), alterando a sua conformação espacial.
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